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Um olhar arbitrário sobre a própria história



RFT! Apenas três letrinhas podem significar muitas coisas. Muitas coisas para quem? Para quem um dia ficou sabendo que esse termo existe e, a partir daí, começou a estabelecer uma série de relações com ele e com tudo o que está relacionado a ele. Falar de RFT é falar de relações, de símbolos, de história de aprendizagem, de cognição, de comportamento simbólico e de uma infinidade de questões derivadas de tudo isso.


O que quero fazer aqui é demonstrar como a RFT (Teoria das Molduras Relacionais) pode nos ajudar a compreender essa incrível capacidade que nós, humanos, temos de criar associações entre palavras — que não passam de combinações de sons e objetos — e generalizar essas aprendizagens específicas para contextos mais amplos.


Essa capacidade tem nos permitido, ao longo da evolução, aprender uma enorme quantidade de coisas e transformar o mundo, mas também tem o poder de gerar grandes doses de sofrimento.


Um Convite para a Reflexão


Eu juro que, se tivesse coragem de passar a vez, eu o faria. Já experimentei milhares de vezes o pensamento de que existem centenas de pessoas melhores do que eu para escrever sobre RFT — e existem mesmo. Mas, ainda assim, topei essa tarefa e decidi usar minha própria história para tentar mostrar a você, leitor, como a RFT pode ser compreendida no batidão da vida real.


Quero demonstrar como a RFT nos ajuda a entender como criamos regras sobre o mundo (capacidade de emoldurar – colocar as aprendizagens em molduras), que podem limitar nossas experiências e gerar insensibilidade às mudanças de contexto; mas também como podemos usar essa mesma capacidade de “emoldurar” para criar novos contextos (novas molduras) que favoreçam a mudança comportamental.


Palavras e Histórias


Gosto muito de um verso da Clarice Lispector que diz:


"As palavras me antecedem e ultrapassam, elas me tentam e me modificam e, se não tomo cuidado, será tarde demais: as coisas serão ditas sem eu as ter dito."

Você já parou para pensar que muitas coisas que dizemos ou pensamos sobre nós mesmos são apenas palavras? Palavras que, muitas vezes, nunca dissemos, mas ouvimos de alguém e passamos a replicar, a responder a elas?

A RFT propõe que a cognição e a linguagem humanas são fundadas em nossa capacidade de identificar e criar relações entre estímulos, algo possibilitado pela nossa habilidade de “responder relacional arbitrariamente aplicável” (Cullinan & Vitale, 2009).


Desde que me entendo por gente, tenho ouvido palavras. Em algum momento, essas palavras começaram a ganhar sentido. Comecei a repeti-las, e essa simples ação foi me transformando, dia após dia, em uma pessoa consciente do mundo e de mim mesma.

Tudo — absolutamente tudo — que aprendemos um dia passou por um processo de observação do mundo externo e de processamento dessa informação no mundo privado.


Molduras Relacionais na Vida Pessoal


Desde pequenas, as crianças são estimuladas a aprender coisas como os nomes de objetos, pessoas e cores, mas também a aprender sobre o impacto de seu comportamento no outro. O que causa um olhar de reprovação? O que tem como consequência algo positivo, como um "Muito bem!""Boa!", ou algo negativo como "Ah não. Sério que você fez isso?". Essas interações ocorrem por meio de palavras, gestos e até mesmo de simples olhares. Quem nunca recebeu aquele olhar do pai ou da mãe que fez com que desejasse sumir?


Meu objetivo aqui é mostrar como essas aprendizagens e as derivações que fazemos a partir delas modelam nossas vidas, muitas vezes culminando em sofrimento.


O Sofrimento e as Molduras Relacionais


A sensação de “não ser boa o suficiente” tem me acompanhado ao longo da vida. De onde vem isso? Aos 42 anos, ainda me pego respondendo a situações — como ser mãe, fazer uma intervenção terapêutica, escrever um texto, fazer supervisão ou ser amiga de alguém — com essa sensação.


Aqui entram as molduras relacionais que foram estabelecidas ao longo da minha história: comparações com colegas de sala, dificuldades de aprendizagem enquanto criança, notas comparadas às de outras colegas e interações com uma comunidade verbal exigente e punitiva. Isso moldou pensamentos como "não sou tão boa quanto minhas colegas de sala"(moldura de comparação), "sou muito lerda" (moldura de coordenação), e "se eu não me saio bem na prova, vou decepcionar meus pais" (moldura condicional).


A Transformação Possível


O interessante é que absorvemos essas informações sem sermos diretamente ensinados. Combinamos essas relações em uma rede de significados. Quando estamos em um contexto onde os estímulos partilham propriedades semelhantes às de nossa história de vida, essas relações são evocadas e podem interferir no nosso comportamento. Por exemplo, ao ler um livro do Niklas Torneke e não entender algo facilmente, ou em workshops com Robyn Walser ou Kelly Wilson, já me senti incompetente, o que provocou comportamentos como sair da sala, mexer no celular ou evitar exercícios propostos.


Linguagem, Comportamento e Mudança


Wittgenstein afirmou que "os limites da nossa linguagem são os limites do nosso mundo". No contexto terapêutico, o desafio é ajudar o cliente a criar novas molduras, que apontem para uma vida significativa e alinhada com seus valores. Segundo Villatte, Villatte e Hayes (2015), não podemos apagar partes da história do cliente, mas podemos alterar as funções simbólicas dessa história ao modificar o contexto no qual ela ocorre.


Como seria minha vida se eu me relacionasse com o pensamento "Não sou boa o suficiente" a partir de uma moldura condicional? Se eu perguntasse: "Esse pensamento me leva na direção do que é importante para mim?" Escolher escrever este texto, mesmo diante de estímulos aversivos como autocrítica e medo de julgamentos, é uma forma de responder aos meus valores e não à minha história de fracassos. Isso me dá uma sensação de viver de forma mais eficaz e significativa.


Conclusão


A RFT é uma perspectiva que tem o potencial de promover vitalidade e minimizar respostas prejudiciais à dor psicológica. O espaço terapêutico é um local para modelar essa sensibilidade flexível ao contexto, ajudando o cliente a desenvolver uma coerência funcional que o permita viver de forma mais alinhada com seus valores e objetivos.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


  • Cullinan, V., & Vitale, A. (2009). The contribution of Relational Frame Theory to the development of interventions for impairments of language and cognition. The Journal of Speech and Language Pathology – Applied Behavior Analysis, 4.

  • Hayes, S. C., Barnes-Holmes, D. & Roche, B. (Orgs.) (2001). Relational frame theory: A post-Skinnerian account of human language and cognition. New York: Plenum Press.

  • Villatte, Villatte & Hayes (2016) . Mastering the clinical conversation: Language as intervention. New York: The Guilford Press

 
 
 

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